Cervantes e o mundo do direito
ByHoje simplesmente desejamos sugerir – em brevíssima dose – algo diferente do que trata habitualmente nos livros e manuais de literatura, porque também desde o ponto de vista jurídico, e não meramente penal, contém páginas imperecíveis de amena e edificante leitura.
Não obstante seus ideais de equidade e justiça, que Dom Quixote pratica peculiar e privadamente – se bem que seguindo princípios de direito público à sua maneira – não deixa o cavaleiro de cometer atropelos [retira a bacia do barbeiro (I- Cap. XXI), investe em ovelhas com sua lança (I- Cap. XVIII), ataca os recipientes de vinho (I- Cap. XXXV)] e outros atos distantes de um bom comportamento – que Cervantes descreve magistralmente, dando a entender sua familiaridade com noções e técnicas jurídicas, adquiridos sem dúvida em estudos e andanças pelo mundo, em contato, não sempre amistoso, com autoridades, tribunais e povos diversos.
Os acertos de Sancho no governo de seu povoado derivam em grande parte dos prudentes e inteligentes conselhos de seu amo, que lhe levam a desconfiar dos litigantes de má-fé, a não aceitar a passividade do juiz, a ter cuidado com certos escrivães, a fazer sempre prevalecer democraticamente a idéia de equidade. Inclusive em seu testamento, Dom Quixote revela conhecimentos de direito. No celebre capítulo dos galeotes, homens que eram obrigados a remar em embarcações (I- Cap. XXII), a quem os liberam – e onde aparece a interessante figura de Ginés de Pasamonte, delinqüente que não nos pode ser antipático, e que voltará a aparecer mais adiante, discorre Cervantes sobre a noção de autoridade, sobre o registro e sentenças dos condenados e seu tratamento, temas todos de índole jurídica.
O relato também nos sugere um comentário sobre o transporte de prisioneiros a galerias, sempre a pé, em condições muitas vezes desumanas, o que era normal na época e subsistiu durante séculos. As funções da justiça e polícia estavam confiadas ao gosto das quadrilhas da Santa Irmandade, que seriam mencionadas pela primeira vez no Cap. X, de não boa fama, com jurisdição nos casos de furto, lesões, arrombamento de casas, estupros, oposições à justiça, etc, instituição que também foi incorporada na América e cujos temidos juízos sumários eram seguidos de penas usualmente cruéis.
Na segunda parte da obra aparece a notável figura de Roque Guinart, em quem concorrem as mais variadas e peculiares circunstâncias para o cabal conhecimento de muitos aspectos da delinquência espanhola da época.
E em muitos de seus capítulos tem o leitor oportunidade de apreciar a cultura jurídica de Cervantes, quem de um modo ou de outro adentra em temas técnicos, tais como a prova, a coisa julgada, a condenação de custas, a coação, a legítima defesa, a morte civil, conhecimentos esses que se supõem adquiridos ao longo de uma vida exemplar, plena de infortúnios, que não lhe impediu adquirir uma cultura humanística, não limitada estritamente ao literário, nem tampouco escrever a obra mestra da literatura espanhola, junto a qual ofusca seus outros escritos, de díspar qualidade, mas também merecedores de nosso interesse e simpatia.
Dom Quixote de la Mancha possui, naturalmente, muito, muitíssimo mais que um repertório de questões jurídicas, merece ser lido com atenção por sua elegância, sua ironia, humor, uso da linguagem, é dizer, por sua altíssima qualidade literária e novelesca, justa e universalmente reconhecida. Hoje simplesmente desejamos sugerir – em brevíssima dose – algo diferente do que trata habitualmente nos livros e manuais de literatura, porque também desde o ponto de vista jurídico, e não meramente penal, contém páginas imperecíveis de amena e edificante leitura.
Texto feito em colaboração com Francisco de Assis Palacios Criado, Registrador imobiliário na Espanha
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