A proteção jurídica do Bioma Pantanal e as propriedades imobiliárias

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Marcelo Augusto Santana de Melo

O Pantanal é protegido internacionalmente pela Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional (Convenção de Ramsar, 1971), que tem por objetivo conservar e utilizar de forma racional as zonas úmidas — definidas como “áreas de pântano, charco, turfa ou água, natural ou artificial, permanente ou temporária, com água estagnada ou corrente, doce, salobra ou salgada, incluindo áreas de água marítima com menos de seis metros de profundidade na maré baixa”. Além desse reconhecimento, em 2000, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) declarou o Pantanal como Reserva da Biosfera e Patrimônio Natural da Humanidade, em razão de sua excepcional biodiversidade e relevância ecológica global.

A Constituição Federal de 1988 reconhece expressamente o Pantanal Mato-Grossense como patrimônio nacional e determina que sua utilização deve obedecer a condições que assegurem a sua preservação (art. 225, § 4º, da Constituição Federal). De acordo com estudo publicado na revista Science of the Total Environment (Elsevier, 2023), o Pantanal possui área total estimada em 165.840 km², dos quais cerca de 151.939 km² — equivalentes a 91,6% de sua extensão — estão localizados em território brasileiro, abrangendo principalmente os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Já segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Bioma Pantanal ocupa aproximadamente 150.355 km² dentro do Brasil, configurando-se como a maior planície alagável contínua do planeta e um dos ecossistemas mais ricos em biodiversidade do mundo.

O objetivo do presente estudo é analisar as restrições legais existentes sobre as propriedades imobiliárias integrantes do Bioma Pantanal, restrições essas decorrentes da função social da propriedade, também prevista na Constituição Federal (arts. 5º, XXIII; 170, III; 182, § 2º; 184; 186; 191, parágrafo único). Ter conhecimento sobre as vedações ao livre exercício do direito de propriedade evita conflitos e fortalece preventivamente a proteção dos recursos naturais.

O regime de proteção das propriedades rurais, especialmente quanto à conservação e ao uso sustentável, é abordado de forma geral e diferenciada em cada uma das leis, estabelecendo regras para espaços ambientalmente protegidos já criados pelo Código Florestal de 2012 — como as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e as Reservas Legais (RLs) — e criando outras zonas protetivas com restrições de uso.

Recentemente, foi sancionada a Lei nº 15.228/2025, que dispõe sobre o uso, conservação, proteção e recuperação do Bioma Pantanal (art. 1º). Essa lei estabelece princípios (como os da precaução, do poluidor-pagador e da participação social — art. 3º, I, III e VIII), define objetivos e diretrizes para compatibilizar as atividades econômicas com a proteção ambiental (arts. 4º e 5º), cria o selo “Pantanal Sustentável” (art. 23) e institui mecanismos de fiscalização, monitoramento e recuperação (art. 5º, II, XIV e XXIII). Esse novo marco legal representa a regulamentação federal do mandamento constitucional do § 4º do art. 225, voltado à proteção do Pantanal. A legislação federal, que serve como diretriz geral, aplica-se ao Pantanal Norte (Mato Grosso) e ao Pantanal Sul (Mato Grosso do Sul), buscando conciliar a exploração econômica com a preservação ecológica das propriedades rurais (parágrafo único do art. 15).

O ponto de partida da proteção jurídica do Bioma Pantanal ocorreu em 21 de janeiro de 2008, quando o Estado de Mato Grosso promulgou a Lei nº 8.830, que instituiu a Política Estadual de Gestão e Proteção à Bacia do Alto Paraguai (BAP) no território mato-grossense (art. 1º). Seu objetivo principal é promover a preservação, conservação e recuperação ambiental para assegurar a sustentabilidade e o bem-estar da população envolvida (art. 3º).

A Lei de 2008 delimitou a Planície Alagável da BAP como foco de suas ações específicas (art. 1º, § 2º) e estabeleceu, entre seus princípios, a integração da gestão ambiental com a gestão dos recursos hídricos e do uso do solo (art. 4º, II). Atribuiu-se ao Poder Público papel crucial na ordenação da ocupação territorial (art. 4º, VI) e na promoção de pesquisas científicas voltadas à criação de novas unidades de conservação e corredores ecológicos (art. 5º, VIII). A SEMA (Secretaria de Estado do Meio Ambiente) foi incumbida de monitorar a fauna e a flora, além de desenvolver o controle de espécies exóticas na planície alagável (art. 6º, II).

Cerca de quinze anos depois, em 18 de dezembro de 2023, o Estado de Mato Grosso do Sul promulgou a Lei nº 6.160, voltada à conservação, proteção, restauração e exploração ecologicamente sustentável da Área de Uso Restrito da Planície Pantaneira (AUR-Pantanal) (art. 1º). Essa lei estabeleceu diretrizes para o uso do solo e dos recursos hídricos (art. 3º, II) e buscou garantir condições de desenvolvimento socioeconômico compatíveis com a proteção da vida (art. 3º). Criou ainda o Fundo Estadual de Desenvolvimento Sustentável do Bioma Pantanal (Fundo Clima Pantanal) (art. 21), destinado a financiar prioritariamente Programas de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) na AUR-Pantanal (art. 23, I).

No que se refere às restrições ao direito de propriedade, as três legislações apresentam especial relevância. A supressão de vegetação nativa — compreendida como a remoção, total ou parcial, da vegetação com vistas ao uso alternativo do solo — possui regimes e restrições específicos em cada lei, especialmente na planície pantaneira, em razão de suas características ecológicas singulares.

A Lei federal nº 15.228/2025 dispõe sobre o uso, conservação, proteção e recuperação do Bioma Pantanal (art. 1º) e estabelece diretrizes gerais para todo o bioma (Capítulo IV). O corte e a supressão de vegetação nativa para uso alternativo do solo, em domínio público ou privado, dependem de:

  1. Inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR); e
  2. Autorização prévia do órgão ambiental competente do SISNAMA (art. 17).

A lei veda o corte e a supressão de vegetação nativa caso o proprietário ou possuidor não cumpra a legislação ambiental, especialmente as exigências do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), quanto às APPs e RLs (art. 17, § 1º). Entretanto, a legislação federal apresenta conceitos genéricos e de baixa precisão técnica, sem estabelecer critérios eficazes para proteção dos recursos ecológicos pantaneiros. Exigir CAR e autorização ambiental não representa inovação significativa no regime jurídico brasileiro.

A Lei mato-grossense nº 8.830/2008 impõe restrições severas ao uso do solo e define regras específicas para a limpeza de pastagens. Na Planície Alagável da BAP são vedados:

  • a implantação de projetos agrícolas, exceto a agricultura de subsistência e a pecuária extensiva (art. 9º, II);
  • e a instalação de atividades de médio e alto grau de poluição ou degradação ambiental, como o plantio de cana, usinas de álcool/açúcar, carvoarias e abatedouros (art. 9º, V).

Uma novidade foi a criação das Áreas de Conservação Permanente (ACPs) na planície alagável, abrangendo capões de mato, cordilheiras, campos inundáveis e diques marginais naturais (art. 8º). A supressão parcial de vegetação nativa pode ser autorizada mediante licenciamento prévio junto à SEMA (art. 8º, § 2º). A limpeza de pastagem é permitida apenas para espécies específicas (como pombeiro, canjiqueira, pimenteira e cambará) e é vedada em capões, cordilheiras, diques marginais e matas ciliares (art. 11 e § 1º).

A Lei sul-mato-grossense nº 6.160/2023 merece destaque na preservação ambiental e estabelece requisitos rigorosos para supressão vegetal (art. 14), priorizando a proteção de áreas ecologicamente sensíveis. Criou a Área de Uso Restrito da Planície Pantaneira (AUR-Pantanal), delimitada pelo mapa do Bioma Pantanal – IBGE 2019 e suas atualizações (art. 1º, § 1º), podendo abranger as Reservas Legais (art. 9º). Essa área compreende tipologias de cobertura vegetal dos biomas Pantanal, Cerrado e Mata Atlântica (art. 11) e é especialmente protegida, vedando-se a supressão de vegetação nativa, salvo em casos de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto (art. 12).

Entre os espaços protegidos estão:

  • as veredas, com toda a área úmida e vegetação até 50 metros do limite superior do campo úmido;
  • os landis, abrangendo a vegetação arbórea que cobre ou margeia cursos d’água;
  • as salinas, com faixa marginal protegida de 100 metros além da praia;
  • os capões e cordilheiras, em 80% da área com vegetação arbórea ou arbustiva;
  • e as áreas baixas, como bordas de baias, vazantes, brejos e baixadas, além dos murundus e corredores ecológicos.

Para obtenção de autorização de supressão vegetal ou conversão de pastagens nativas (art. 14), exige-se:

  1. inscrição e aprovação do imóvel no CAR-MS (art. 14, I);
  2. inexistência de infração ambiental transitada em julgado nos últimos três anos (art. 14, II);
  3. proteção e uso regular das APPs e RLs (art. 14, VI).
    O descumprimento de qualquer requisito impede a concessão de licenças até a regularização (art. 14, § 4º).

A legislação também exige estudos ambientais proporcionais ao porte da intervenção:

  • EIA/RIMA para supressão superior a 500 ha (art. 14, § 1º);
  • EAP (Estudo Ambiental Preliminar) se a substituição de pastagem nativa exceder 50% da área do empreendimento (art. 14, § 1º, II).

Quanto a plantas e culturas exóticas, as leis estaduais impõem vedações expressas na planície pantaneira. A Lei do Mato Grosso do Sul proíbe a implantação de soja, cana-de-açúcar, eucalipto e demais cultivos florestais exóticos (art. 27), admitindo apenas cultivos comerciais consolidados até a data da publicação da lei e sem ampliação de área (art. 27, § 1º, I). Permite-se, contudo, pastagem cultivada exótica (art. 27, § 1º, II). A Lei do Mato Grosso, de forma semelhante, veda projetos agrícolas que não sejam de subsistência e impede atividades de médio ou alto impacto ambiental (art. 9º, II e V).

Constata-se, portanto, que as restrições impostas pelas três leis afetam diretamente o direito de propriedade e, por consequência, devem constar das respectivas matrículas imobiliárias para dar ciência a terceiros, merecendo reforço de publicidade. O homem médio não possui conhecimento da legislação e o reforço da publicidade é muito importante para potencializar a publicidade ambiental. O Superior Tribunal de Justiça, tratando da referida matéria, fixou tese jurídica de que “o regime registral brasileiro admite a averbação de informações facultativas sobre o imóvel, de interesse público, inclusive as ambientais”.

Os atos registráveis (em sentido amplo) não são taxativos, conforme jurisprudência administrativa e o efeito de concentração previsto no art. 246 da Lei nº 6.015/1973 permite a averbação de qualquer fato que altere ou influencie o direito de propriedade, ainda que não expressamente previsto, quando tiver repercussão ambiental relevante. Assim, admite-se a averbação de restrições ambientais, promovendo a convergência entre as publicidades registral e ambiental. O efeito de concentração ganhou destaque com a Lei nº 13.097/2015, cujo art. 54, III, prevê a “averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei”.

Assim, comprovada a inserção da propriedade imobiliária na Área de Uso Restrito da Planície Pantaneira (AUR-Pantanal) no Estado do Mato Grosso do Sul ou na Bacia do Alto Paraguai (BAP) do Estado do Mato Grosso, deverá o Oficial do Registro de Imóveis promover a averbação constando que o imóvel objeto da matrícula encontra-se no espaço geográfico protetivo do bioma Pantanal nos termos da respectiva legislação estadual. Essa informação poderá ser extraída do CCIR (Certificado de Cadastro de Imóvel Rural) ou do CAR (Cadastro Ambiental Rural).


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